Vou-vos contar uma história. Uma história real, minha. Teria eu entre os meus quatro, cinco anos. E acordava todas as manhãs mais cedo. Ainda todos dormiam. Já o sol se erguera. Muitas vezes acordava a sangrar do nariz. Mas sempre com vontade de ir à casa-de-banho. E era o que eu fazia quando acordava: ir à casa-de-banho e voltar para a cama. No quarto onde eu dormia dormia também a minha irmã, noutra cama. Tínhamos a varanda nesse quarto, na parede contrária à porta que dava para o hall, que por sua vez era o núcleo das divisões da casa. As portas de vidro que separavam a varanda do quarto estavam tapadas por uma longa cortina laranja, com padrões de flores num estilo antigo. Um laranja vivo. Um laranja que me parecia deixar o quarto harmoniosamente quente. Ainda me lembro de estar deitado, numa manhã tardia, na cama da minha irmã - a cama mais próxima da varanda e consequentemente a mais afastada da porta para o hall - de olhos acordados, virado para essa cortina e a reflectir, nesses meus quatro, cinco anos de vida, sobre os padrões da cortina, a mesma cortina que eu olhei quando acordei de um pesadelo que voltei a ter anos mais tarde. Mas esta não é a história que vos quero contar.
Tal como escrevi, nesse quarto, nessa idade, entre esses acontecimentos de me levantar mais cedo, num sol já acordado, os da casa ainda a dormir, eu acordava. Muitas vezes a sangrar do nariz mas sempre com vontade de ir à casa-de-banho para depois voltar para a cama. Não sei quando, estou certo de que não fora no início, mas sei que algures foi nessas tantas vezes. Uma vez, acordei, como sempre fizera, para ir à casa-de-banho. E eis que, quando chego à porta do meu quarto, do outro lado está uma simples aranha, no hall, frente à porta da casa-de-banho. No início não lhe dei atenção. Mas o mistério tem nome porque acabamos, mais tarde ou mais cedo, de nos apercebermos da sua presença. E já eram manhãs demais, seguidas, que aranha estava no mesmo sítio, ali no chão, à frente da porta, no meio do nada e, de alguma forma, pressentia o seu olhar fixo em mim quando a via. E comecei aperceber-me que ela estava sempre lá, como que à minha espera, para desaparecer na casa-de-banho. Quando finalmente achara muito estranho tais acontecimentos repetidos, decidi tentar apanhá-la. Das primeiras vezes que tentei, tentei a correr, porque a andar ela ia para a casa-de-banho consoante o meu passo. E consoante o passo da minha corrida, ela escapava-se sempre para a casa-de-banho para desaparecer. Depois de algumas tentativas de apanhá-la correndo tentei de outra forma: indo ao seu encontro em passos muito lentos e silenciosos mas obtivera o mesmo resultado que das outras vezes. Até que me fartei de tentar caçá-la e num dia, naquele dia que iria ser o último dia que haveria de vê-la, fui a correr irritado ao seu alcance, mas ela voltou a desaparecer na casa-de-banho e nesse dia, irritado, decidi procurá-la em todos os cantos da casa-de-banho, até por baixo do tapete procurei, mas não a vi. Nunca mais a vi. Sabia, naquela altura, que ninguém haveria de testemunhar que o mistério da vida iria surgir em nevoeiros na minha vida tão cedo, na ingénua idade. De facto, apercebo-me agora que esse mistério surgiu na etapa das idades em que estamos a construir a nossa concepção do mundo, nos meus quatro anos... Não acredito em coincidências. Acredito na lógica, na consequência, no efeito, no resultado e naquilo que não consigo ver: o mistério. Por isto vos conto esta minha história que ainda hoje me deixa pensativo. Porque é algo que não consigo resolver e sinto que é um aviso. Uma premonição. O que é que a aranha significava? E porque é que ela estava ali? E porque é que ela fugia sempre que eu me aproximava? Fugia ou escapava? E porquê para a casa-de-banho? A casa-de-banho... era o meu objectivo... porque ia ela para o meu objectivo? Porque é que ela desaparecia sempre que eu atingia o meu objectivo? Porque não iria ela para outro lado? E se fosse para outro lado, eu iria? Desviar-me-ia do meu caminho? Mas o meu principal objectivo não deixara de ser a casa-de-banho para ser a aranha? Então já seria um desvio de pensamento? A minha irmã... estava atrás das minhas costas a dormir... uma pessoa que amo... será que seria esse o meu desvio? O desprezo aos que amo?
São tudo perguntas que só poderei responder quando a morte me vier buscar... até lá, vou vivendo.
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